FLICTS
Era uma vez uma cor muito rara e muito triste
que se chamava Flicts. Não tinha a força do vermelho, não tinha a imensa luz do
amarelo, nem a paz que tem o azul. Era apenas o frágil e feio e aflito Flicts.
Tudo no mundo tem cor; tudo no mundo é azul,
cor-de-rosa ou furta-cor. É vermelho ou amarelo; quase tudo tem seu tom roxo, violeta
ou lilás. Mas não existe no mundo nada que seja Flicts – nem a sua solidão.
Flicts nunca teve par, nunca teve um
lugarzinho num espaço bicolor e tricolor muito menos (pois três sempre foi
demais). Não; não existe no mundo nada que seja Flicts.
Na escola, a caixa cheia de lápis de cor; de
colorir paisagem, casinha, cerca, telhado, árvore, flor, caminho, laço, ciranda
e fita. Não tem lugar para Flicts.
Quando volta a primavera que o parque e o
jardim todos se cobrem de cores, nenhuma cor nem ninguém quer brincar com o
pobre Flicts.
Um dia, ele viu no céu – depois de uma chuva
cinzenta – uma turma toda feliz saindo para o recreio. E se chegou a hora para
brincar, é assim: Deixa eu ficar na berlinda? Deixa eu ser a cabra cega? Deixa
eu ser o cavalinho? Deixa que eu fique no pique. Mas, ninguém olhou para ele.
Só disseram frases curtas, cada um por sua vez:
_ Sete é um número tão bonito; disse o
vermelho.
_ Não tem lugar pra você; disse o laranja.
_ Vai procurar um espelho; disse o amarelo.
_ Somos uma grande família; disse o verde.
_ Temos um nome a zelar; disse o azul;
_ Não quebre uma tradição; disse o claro azul
anil.
_ Por favor, não vá querer quebrar a ordem
natural das coisas; disse violento o violeta.
E as sete cores se deram as mãos e à roda
voltaram. E voltaram a girar. A girar, girar, girar. E mais uma vez, deixaram o
frágil, aflito e feio Flicts na sua branca solidão.
Mas Flicts não se emendava (e por que se
emendar?); não era bom ser tão só e um dia foi procurar um trabalho pra fazer a
salvação no trabalho: “Será que eu não posso ter um cantinho ou uma faixa em
escudo ou em brasão, em bandeira ou estandarte”?
“Não há vagas”; falou o azul. “Não há vagas”;
sussurrou o branco. “Não há vagas”; berrou o vermelho.
Mas, existem mil bandeiras; trabalho pra
tanta cor. E Flicts correu o mundo em busca do seu lugar. E Flicts correu o
mundo: pelos países mais bonitos; pelas terras mais distantes; pelas terras
mais antigas; pelos países mais jovens.
Mas, nem mesmo as terras mais jovens, as
bandeiras mais novas e as bandeiras todas que ainda vão ser criadas se
lembraram de Flicts ou pensaram nele para ser sua cor. Não tinha para ele uma
estrela, uma faixa, uma inscrição. Nada no mundo é flicts ou pelo menos quer
ser. O céu, por exemplo, é azul; é todo do azul o mar.
Mas quem sabe o mar, “quem sabe” pensa Filcts
agitado. “O mar é tão inconstante. É cinzento, se o dia é cinzento, como um imenso
lago de chumbo. E muda com o sol ou a chuva; negro,salgado ou vermelho”.
O mar é tão inconstante, tem tantas cores o
mar. Mas, para o pobre do Flicts, suas cores não dão lugar. E o pobre Flicts
procura alguém para ser seu par; um companheiro, um amigo, um irmão
complementar em cada praça e jardim, em cada rua e esquina: Eu posso ser seu
amigo?
“Não”, avisa o vermelho. “Espera” o amarelo diz.
”Vai embora”, lhe manda o verde. E, mais uma vez sozinho, o pobre Flicts se
vai...
Um dia, Flicts parou; e parou de procurar. Olhou
pra longe, bem longe e foi subindo, subindo. E foi ficando tão longe, e foi
subindo e sumindo; e foi sumindo e sumindo... Sumiu.
Sumiu que o olhar mais agudo não podia
adivinhar pra onde tinha ido, pra onde tinha fugido, em que lugar se escondera,
o frágil e feio e aflito do Flicts.
E hoje com dia claro, mesmo com o sol muito
alto, quando a lua vem de dia brigar com o brilho do sol, a lua é azul. Quando
a Lua aparece – nos fins das tardes de outono – do outro lado do mar, como uma
bola de fogo, ela é redonda e vermelha. E nas noites muito claras, quando a
noite é toda dela, a Lua é de prata e ouro, enorme bola amarela.
Mas ninguém sabe a verdade (a não ser os
astronautas) que de perto, de pertinho, a Lua é flicts. Quando Neil Armstrong –
o primeiro homem que pisou na Lua – veio ao rio de Janeiro, contei-lhe a
história de Flicts e ele me confirmou que a Lua era, realmente, FLICTS
(Ziraldo).
O mundo não é uma
coleção de objetos naturais, com suas formas respectivas, testemunhadas pela
evidência ou pela ciência; o mundo são cores.
A vida não é uma série de funções da substância organizada, desde a mais humilde até à de maior requinte; a vida são cores.
A vida não é uma série de funções da substância organizada, desde a mais humilde até à de maior requinte; a vida são cores.
Tudo é cor...
Aprendo isso, tão tarde! com Ziraldo. Ou mais propriamente com Flicts... Quem é Flicts?
... Flicts é a
iluminação — afinal, brotou a palavra — mais fascinante de um achado: a cor,
muito além do fenômeno visual, é estado de ser, e é a própria imagem.
Desprende-se da faculdade de simbolizar, e revela-se aquilo em torno do qual os
símbolos circulam, voejam, volitam, esvoaçam — fly, flit, fling — no desejo de
encarnar-se. Mas para que símbolos, se captamos o coração da cor? Ziraldo realizou
a façanha, em seu livro.
Carlos Drummond de
Andrade
Flicts é um livro infantil ilustrado do escritor e desenhista Ziraldo editado
pela primeira vez em 1969. No
livro Flicts é uma cor de que ninguém gosta, ninguém lê, da qual
ninguém se lembra. O livro conta sua jornada em busca de seu lugar no mundo.
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